1.2.07

A Clarissa

Ela caminhava com o cotidiano peso muito chato do inferno nas costas. E o pano já tava bem seco. Já há bastante tempo seco. Era noite bem clara, e a cabeça doía com tanta luz de carro e poste. Clarissa - que era seu nome - preferiu tomar uma rua deserta, à direita, pois mais a frente via aquelas porra de guri cheios de porra pra dar. Não queria nada disso essa noite. O corpo queria um pouco de pão. O peito, um lar. Um de verdade, daqueles de pai trabalhador e mãe que faz bolinhos gostosos. A rua não é casa pra ninguém, sentia. Por quê não podia ser igual a merda dessas pati fudida, cheia de grana e caras legais atras delas. "Porra! Imagina acordar com uma família du caralho numa mesa cheia de coisa boa de comer". Por quê não podia ter uma mãe rica e, quem sabe, um pai? "Se as coisas fossem um pouco diferentes...''

Assim longe, devaneando, adormeceu num canto sujo e escondido e escurdo e vazio de gente. Sonhava. Sonhava que era uma menina de rua sem pai. Ao que dizem, seu pai viajara o Brasil todo, homem andado. Do Ceará, onde nasceu, viajara para São Paulo; de São Paulo, decidiu ir para Porto Alegre, lá por volta de 1980. Têm gente que nasce com má sina, como é seu caso de retirante nordestino. A mãe é mesmo gaúcha, desde não sabe quando puta e alcóolatra. Não era bem um sonho, era mais um pesadelo - sonhava que era ela mesma. Nisso, ninguém menos que a fada madrinha lhe cutucou o ombro. Linda, vestido azul, gorda, e com a varinha de condão.

"Que queres, minha filha?", pergunta com voz enfadonha aquela dádiva dos contos de fadas. "Que meus pais tivessem condições melhores de vida...". "Assim seja" respondeu a gorda alemoa.

Num passe de mágica, tudo mudou. Seu pai, no Ceará, viu cair chuva suficiente pra dar uma revivida no sertão. Viveu alguns anos bons e acabou por se empregar capataz de um coronél malvado, mas com o salário podia ter uma vida bastante razoável. Teve seis filhas: a Maria do Socorro, a Conceição, Maria do Rosário, a Carolina, a Joana e a Rita de Cássia. A mãe de Clarrisa encontrou, numa mudança de maré quando jovem, a possibilidade de fazer um curso de secretariado. Virou secretária. Não teve filhas. Fim do sonho.

Clarissa acordou. Ficou mais nauseada ainda. Não sabia o que era pior: se essa vida assim - a "sorte" de ter nascido - ou simplismente, a dádiva da fada...

O jeito era encontrar uma gasolina com alguém. Era uma boa encontrar o Migué, também. Só uma gozadinha pra esquecer um pouco.

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