13.5.08

Toma cuidado, Lu!


Canção de um pastor de cabras teocrítico

Eís-me deitado, doente do intestino -
Os percevejos me devoram.
Lá adiante ainda há luzes e barulhos!
Escuto-os dançarem...

Ela queria, a esta hora,
Escapar até onde estou.
Espero como um cão -
Não vejo sinal dela.

E o sinal-da-cruz quando prometeu?
Como podia ela mentir?
- Ou corre atrás de qualquer um,
Como fizeram minhas cabras?

Onde arranjou o vestido de seda?
Ah, minha orgulhosa!
Haverá outros bodes ainda
Nesse bosque?

- Como torna confuso e envenenado
A espera amorosa!
Assim brota, na noite abafada,
O cogumelo venenoso.

Amor me consome
Como sete males -
Não tenho apetite para nada
Adeus, minhas cebolinhas!

A lua já se pôs no mar,
Cansadas já estão as estrelas,
Cinzento nasce o dia -
Eu bem que morreria.

(Frederico Nietzsche. A Gaia Ciência. Apêndice: Canções do príncipe Vogelfrei. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 302s)

4.5.08

Cotas

O que eu entendo por raça?

Raça são ônibus cheios de gente majoritariamente negra ou majoritariamente branca. Basta pegar o Menino Deus e depois o Restinga ou o Campo Novo, lá pelas sete horas. O projeto de urbanização de Porto Alegre denota divisão racial.
A população "branca" tem maior tempo de escolaridade que a "negra" e "parda". Tá lá nos estudos do IPEA. É só conferir. Me lembro da propaganda do Banrisul. Só tinha uma negra. Bastante clara. Ao fundo da imagem, onde ela estava, até parecia branca.

O embaixador Alberto da Costa e Silva, um dos maiores entendedores da África no Brasil, diz que não sabemos o quanto temos de africanidade. E o currículo de história da UFRGS só tem cadeiras eletivas de história da África. Quem estuda a situação do negro no Brasil, só sob a ótica do escravo. Só as negociações. Donde essa gente vem parece não ter valor para a narrativa histórica. Não tenho os dados exatos, mas parece que 90% da população estudantil das universidades federais é branca. Vejo ainda poucos negros no Campus do Vale, onde ficam boa parte dos cursos. Raça, pra mim, é isso. Política, história, costumes, economia, educação. Olha que nem falei do público das prisões. Olha que nem falei do medo que tenho quando vejo pessoas trajadas como "manos" se aproximando de mim na noite, pelas ruas do centro e Cidade Baixa. Quero dizer, raça são imaginários sociais também.

Há gente a chamar o Brasil de país racista. Ao mesmo tempo, muitos destes negam a existência de raças. E como vai haver racismo sem haver raças? No sentido biológico, certamente não existe. Mas olha um pouco de tv. Nesta, o mundo parece que é todo branco. Raça é economia, raça é imaginário, raça é estética, raça são políticas de segurança.

Muitos acham racismo a estipulação de cotas raciais. Mas o sistema meritocrático, quase sem querer, também não é racializado? Mérito de filhos de funcionários públicos, médicos, engenheiros. Isso não é contestado por quem contesta as cotas. Fica-se com o "temos que melhorar o sistema de ensino do povo". Mas quem luta pelas cotas não disse o contrário. Nesse ponto há concordância.

A questão das cotas, para mim, não é tanto educacional. É profissional. Ao nível universitário, os formandos são em geral provenientes de classes mais abastadas. Acredito eu, predominantemente brancos. Pois bem, me pergunto se um arquiteto vindo deste grupo socio-econômico vai ter a vontade de entender as especificidades da ocupação territorial e da habitação guarani, que não são semelhantes a nossa. Ou se um médico, trabalhando num posto da periferia, vai ter a sensibilidade para entender e atender a uma mulher negra que recém transou com seu homem e apareceu para consulta sem tomar banho. Este foi um caso contado por uma amiga minha. Ela apenas culpou a mulher pela sua falta de educação. Será que ela estava apta para entender essa mulher? Será que, nesse caso, ela estava apta para atendê-la? Eu imagino que um profissional originado da periferia, alguém que conheça a situação de seus vizinhos, terá maiores condições de entender e atender nos postos das periferias da nossa cidade. Assim como um nutricionista kaingang terá melhores condições para intervir junto aos seus.
As cotas me parecem uma questão muito prática.
Sua implementação é complicadíssima. Seus mecanismos são muito sensíveis. Identidades são coisas tão instáveis, tão difíceis de se determinar.

Os debates também são complicadíssimos. Em geral, se joga com informações hipotéticas. Como no caso deste texto, em alguns momentos. "Os cotistas terão notas baixas". "Os cotistas não terão condições de se manter financeiramente". Essas são questões importantes, as quais devem estar nos cálculos da comissão de implementação das cotas. Mas acredito que não devem impedir a tentativa de implantação.E dizer que quem é contra as cotas é racista também não é certo. Melhor, é uma estupidez.
Este texto é muito apologético. Deve ser combatido. Deve ser deslegitimado, principalmente pelo pouco caso do autor em construí-lo com maior cuidado. Tudo que é fraco dever ser atacado e desmontado.E os pontos francos das cotas devem ser atacados. Só assim poderá ter maiores condições de se manter.