18.9.07

Notas autobiográficas de alguém que não existe

Já era um homem velho há muito tempo. Um espírito nebuloso dificultava sua visão, tornando-o quase um cego com visão perfeita. E sempre insatisfeito. Vivenciou tantas coisas em sua vida. Apesar da pouca idade – recém completara 27 anos – era um rapaz experimentado e pouco afeito, agora, às novas experiências.
Optou esta noite por mais uma volta nas ruas escuras de sua cidade. Bares repletos de homens vazios, já dizia o poeta. Sentou-se para uma cerveja, num desses butecos típicos, longe dos bares mais badalados. Sentia-se tremendamente só. Sim, vivia um memento tenso. Tão tenso que usava freqüentemente advérbios: toda frase, inequivocamente, levaria um.
Fora deixado por todos os que mais considerava seus amigos. Os amigos se foram, as mulheres se foram, a família tão distante, o copo vazio. “Garçon, mais uma!”: essas foram as primeiras palavras ditas nas últimas oito horas. É possível ficar tanto tempo calado, principalmente depois que se aprende a responder – ou se contenta em responder – aos outros com simples gestos de cabeça. Desiludido! Os amigos criam uma ilusão fácil de perenidade. Toda moça linda cria uma sensação de eterno. Por isso tudo é tão belo! Não estava mais pronto para falar, ter intimidade, com alguém. Não queria. A solidão já era para ele uma escolha. Não se sentia bem para querer beber, mas bebia para relativizar o amargor.
Mas não sabia mais o que era sofrer. Aprendeu a observar as coisas em sua naturalidade. Sentia certo amargor, mas não dor nem desespero. Aprendeu a viver. O dinheiro era pouco, e tão óbvio quanto isso era a vontade (e a necessidade) de usá-lo para beber. Só, meio amargo, mas nunca vazio. Enquanto não fala, sua voz interior da voltas tremendas, cruzando do céu ao inferno, com paradas em lugares só aparentemente impossíveis de se chegar. É um ermitão e um andarilho, e isso também em sua cabeça. O movimento é a marca desse sujeito. Sim, é um sujeitado pela vida. Mas alguém que procura brechas para virar agente. Vê tudo isso como belo. Esse amargor, que não é dor, recobre tudo como a geada na grama, como neblina numa manhã fria: nada se vê, mas se sabe que está lá. O que está lá, como, com qual forma? É o Mistério. Talvez o Mistério da vida mesmo... riu-se de si mesmo. Que bonito é isso de rir de si mesmo, de não se levar a sério, ver as coisas com olhos leves, espírito quase sapeca, meio contemplativo, meio criança... sua família se foi, seu emprego se foi, tudo se foi. Hoje tem mais de oito horas do seu dia roubados em troca de um pouco de pão e cerveja. Mas isso não o incomoda tanto. Ama muito a si, mas esses longos tempos de solidão são duros. Mas sabe que foi nesses longos, e não poucos, tempos de solidão que descobriu grandes coisas de sua pequena vida, vivenciando neles, de vez em quando, talvez o próprio Mistério. Qual o sentido de tudo? Ele não sabia responder, mas tocou o telefone. Ele já sabia: era ela! Tantas vezes sumida, tantas vezes ressurgida. Essas fugidias moças, que nos amargam na fuga, nos embriagam na volta. Tentar reproduzir, em palavras, o que sentiu nos momentos seguintes é o mesmo que tentar guardar, na eternidade, uma flor de primavera entre as páginas de um livro. Há coisas que só são belas por sua efemeridade. A textura e o espinho não se conservam no tempo. Sabia que estando com ela não deixaria de estar só, mas o perfume da rosa ia embaralhar sua percepção por um instante.
Na janela do apartamento dela havia aquela luz habitual. Seria uma noite bonita, acontecesse o que acontecesse.

4.9.07

Liberdade, desejo típico de escravo

Quem nunca sentiu que estava perto da morte? Aquela sensação angustiante de que tudo o que há pode chegar ao fim, ir por água abaixo?
Essa é uma sensação que me vem com certa freqüência... e é quando tudo faz sentido! Se se pensar os mil condicionantes e determinantes que na história possibilitaram o mundo atual e o meu nascimento, se se pensar tudo que vivi, de bom, de “hostil” e de mal – que, no final, é quase tudo bom –, então se chega à conclusão: é tudo um grande dom do acaso e da história! E assim como o recebemos, assim nos será retirado, o que nos exige aproveitar seus pequenos sabores – e disabores!
A sensação de morte traz sentido à vida: toda obrigação, tristeza e peso de viver parecem quase evanescer diante do nada da morte... e só então um raro – e indiscreto – gostinho de liberdade nos vem à língua.
Qual seriam as últimas coisas que você faria se soubesse que está para morrer logo? (pergunta clichê, eu sei, mas necessária). Normalmente, a resposta dada se resume a uma boa orgia, ou pelo menos uma sacanagem com aquela menina específica (e quem sabe até especial!).
Pois bem, e no caso de se receber a notícia do fim bem no meio da rua, sozinho, sem um puto pila no bolso, celular sem crédito, etc.? Nada de orgia! Quem sabe o desconforto, quase desespero, de perder tudo que tem na vida! O perigo de encontrar o diabo – e pior ainda. Deus! –, lá do outro lado, depois de uma vida inconforme!
MAS de que adianta esse medo diante do que não se conhece? Sócrates, em sua apologia escrita por Platão, diria que ter medo do desconhecido (no caso, o que vem depois de morrer) não passa de pura arrogância.
Basta parar para sentir o corpo relativamente saudável, lembrar os bons amigos que se fizeram no dia-a-dia, a família, os amores... o sol quente... e mesmo o ar poluído da avenida Ipiranga. Nesse momento incompreensível, em que tudo na vida corre o risco de ser perdido (como se nós tivéssemos, de fato, alguma coisa), é que podemos separar o joio do trigo, separar aquilo que dá algum sentido à vida daquilo que fazemos por força de obrigações... aí então, como que sem o peso da muita tralha que carregamos todo dia conosco (trabalho, desentendimentos familiares, bestas obrigações ditas morais, etc.), vem aquela sensaçãozinha de “livre” – “que diferença faz tudo isso pra mim”, seguido de um sorriso muito arejado.
A sensação de morte liberta, nem que seja por um curto tempo, mas liberta.