27.12.07

Ontem o pregador de verdades dele
Falou outra vez comigo.
Falou no sofrimento das classes que trabalham
(Não do das pessoas que sofrem, que é afinal quem sofre).
Falou da injustiça de uns terem dinheiro,
E de outros terem fome, que não sei se é fome de comer
Ou se é fome da sobremesa alheia.
Falou de tudo quanto pudesse fazê-lo zangar-se.

Que feliz deve ser quem pode pensar na infelicidade dos outros!
Que estúpido se não sabe que a infelicidade dos outros é deles,
E não se cura de fora,
Porque sofrer não é ter falta de tinta
Ou o caixote não ter aros de ferro!

Haver injustiça é como haver morte.
Eu nunca daria um passo para alterar
Aquilo a que chamam a injustiça do mundo.
Mil passos que desse para isso
Eram só mil passos.
Aceito a injustiça como aceito uma pedra não ser redonda,
E um sobreiro não ter nascido pinheiro ou carvalho.

Cortei a laranja em duas, e as duas partes não podiam ficar iguais.
Para qual fui injusto - eu, que as vou comer a ambas?

(Fernando Pessoa. Poesia completa de Alberto Caeiro. Companhia do Bolso, 2006, p. 129)

2 comentários:

nome: tecnocaos disse...

com um poema desses vão acabar te chamando de neo-liberal...

Eu, que já sofro desse mal, até concordo com muito desse poema, mas não sem um pouco de pesar...

Eu mesmo disse...

Adorei o poema!

Abraços