4.4.07

Um conto azedo

Há uma intencionalidade bastante marcada quando pede a seu assistente trazer amostras, relatórios e coisas afins. Trabalham ambos no mesmo laboratório, num projeto sobre fungos em latas de conserva, mas ficam em salas separadas. O imperativo de ver o rapaz faz com que ocupe parte de seu tempo em bolar subterfúgios para trazê-lo para perto de si.

Ele é um rapaz amável, sempre bem disposto e bem humorado. Todo seu jeito tem um quê de simples e, ao mesmo tempo, muito consistente. Seu espírito crítico não torna sua voz pretensiosa quando emite julgamentos. Além de tudo, um belo rosto num belo corpo. Inteligente, gracioso e um rosto angelical.


Ela já estava apaixonada pela cativante figura do rapaz. Nunca se deu a grandes amores na vida, mas havia nela uma tendência enorme a se entregar amorosamente a algumas pessoas no plano das idéias. Sim, era uma platônica. Uma platônica de seus trinta e três anos e um corpinho bem conservado.


Decidiu que tomaria uma resolução o quanto antes. Decidiu também esperar o melhor momento. Mas já era a enésima vez a tomar a mesma decisão a respeito de seu assistente. Não passava além do ponto das deliciosas conversa que tivera com o rapaz. Nada além disso.


Apreciava seu rosto como quem contempla um quadro. Não sabia explicar - muito menos entender - a singularidade dessa obra artística. Olhos grandes, de uma cor indefinível, num rosto largo, bem medido, com uma boca ligeiramente larga e carnuda. Estática, contemplava, sem entender, como podiam as imperfeições deixar o todo mais irresistível ainda. A pequena cicatriz no canto esquerdo da boca - decorrente de uma briga -, os lados do nariz levemente disformes e mesmo a pequena verruga na maçã esquerda do rosto, a direita do olho esquerdo... não sabia como, mas o rosto que há quatro meses achará tão estranho, hoje possui um caráter único. É, para ela, a beleza em si.


Às vezes se condenava pelo prazer sentido pela beleza. Não seria sua paixão mais atração física do que amor propriamente dito?, pensava consigo. Bem, todo amor também é atração física. Talvez não haja como - e porquê - separar. Mas, e se por acaso - Deus o livre - acontecer de o pobre rapaz ser desfigurado por uma infelicidade do destino? Que viria a sentir se aquela bela tela tomasse um banho de tinta nanquim? Sabia, sentia consigo, que permaneceria completamente devota... sentia, lá no fundinho de sua (in)consciência, uma vontade - Deus o livre - de que isso acontecesse ao rapaz, para assim poder provar seu devotamento: "Não pensa besteira, sua egoísta!", repreendia-se.

A angústia e a felicidade, para ela, provêm do mesmo objeto. A perspectiva de felicidade é, ao mesmo tempo, o vazio do que não está junto. Pode haver felicidade em amar alguém?, perguntava para si mesma. E tudo permanecia sempre o mesmo... aparentemente.

Num belo dia de descuido, um frasco de ácido nítrico indevidamente colocado no alto de uma estante, resvala, cai e se espatifa na quina da estante vizinha, bem no nível da cabeça da pesquisadora. Infelicidade do destino! Tomou um banho ácido, principalmente na face, sendo prontamente atendida.

No hospital, com o rosto coberto por bandanas, recebeu a visita de muitos amigos, inclusive de seu caro amado. Conversa vai, conversa vem, o assistente é interrompido pelo seu celular. Apesar de ter tomado alguma distância, foi audível para a pesquisadora a seguinte resposta: "Certo Ritinha, tô indo pra'í, já. Tchau amorê!". Conversaram os dois biólogos mais um pouco. A ternura e o espírito de pena do assistente não disfarçavam sua própria felicidade, diferente dela, a qual com seu ar tranqüilo conseguia mascarar a ácidez que tomava conta de sua alma.

Essa foi a primeira das três visitas do assistente, no período de um mês e meio, tempo em que a pesquisadora passou internada no hospital.

4 comentários:

Anônimo disse...

Frustrações, expectativas, jogo de aparências, inconstância.. belo relato da natureza humana.

Eu mesmo disse...

Caráleo!

nome: tecnocaos disse...

Muito malvado esse conto...

gostei...

Anônimo disse...

Fiquei com a impressão de estar lá (no laboratório) com os dois. Acho que isso só aocntece quando podemos ler textos com força.