28.3.09

O escrachado na história

No link a seguir, a aula de um professor gravada por um aluno. Possivelmente, num cursinho pré-vestibular.

Clique Aqui. O vídeo está no youtube.

O uso do humor, do deboche e da ironia na escrita da história são um deleite para o leitor ou ouvinte. Quem já leu Gilberto Freyre ou os escritos históricos de Marx ou Nietzsche entende o que estou dizendo. Contemporaneamente, por questões comerciais, os professores de cursinho pré-vestibular têm usado deste gênero narrativo para tornar suas aulas agradáveis. O professor de cursinho virou uma espécie de showman para vender seu produto: isso é o efeito do imperativo de mercado. A princípio, não há mal algum nisso, desde que os objetivos do ensinar história não sejam prejudicados. Objetivos estes que são, a meu ver, os de trabalhar conceitos históricos e historicizados e o de criar e refinar o sentido histórico, tal como o descreveu Frederico Nietzsche no seu livro Gaia Ciência, dos participantes da aula.

Vamos à aula do vídeo em questão. O professor é engraçado. Os alunos riem. O assunto da aula é a participação do Brasil na Primeira Guerra Mundial. Na boca do professor, todos os tópicos referentes a dita participação são motivos de deboche. A atuação da equipe médica no sul da França. A não atuação dos aviões brasileiros. O ataque, ou suposto ataque, de um submarino alemão. Pode-se até pensar que o professor tenha passado do ponto do deboche e chegado ao do escrachamento. Nas palavras dele: "Patético".

Eu ainda não havia feito leitura alguma sobre a participação brasileira na guerra. Por isso, recorri a Wikipedia. Encontrei este artigo aqui. Ao fim do mesmo, há uma relação de obras e outros endereços na rede sobre o assunto. Levanto algumas considerações.

Primeiro, em termos de factualidade, há alguns pontos que o artigo entrou em certo choque com a narrativa do professor. Os bandeides ao qual o professor se referiu foram, segundo o artigo, um socorro aos franceses atingidos pela gripe espanhola. Houve o ataque de um submarino alemão, segundo o artigo. E mesmo que não tivesse acontecido ataque algum, imagine-se a situação. Um monte de brasileiros, saídos de um país tropical, que talvez nunca houvesse pegado em arma, se vê em meio a uma Europa em guerra, correndo o perigo de assédio de submarino alemão. Qualquer movimentação estranha em água poderia ser sinal de perigo. Ou não? Se sim, se não, o que fazer?

Segundo, uma questão epistemológica. A narrativa histórica pretende, em último ponto, averiguar a veracidade de um enunciado ou indicativo histórico. Enunciado ou indício baseados em uma rede provas documentais. Assim, o historiador deve elaborar enunciados significativos ou apresentar indícios a partir da análise de fontes ou da citação e crítica de literatura secundária que já tenha trabalhado com fontes primárias. E o que fez o professor do vídeo senão ignorar essa pré-condição da disciplina histórica e cair no campo do julgamento moral. Para o professor, todos os militares engajados foram patéticos. Aviadores, médicos, soldados rasos, comandantes. Entrando no campo da moral acaba-se com a possibilidade de tentar entender o real-passado. Não houve questões táticas, apenas patetice.

Terceiro, uma questão moral. Putz! Imagina o soldado que lá estava, em plena Europa, quem sabe com frio, quem sabe com fome. Possivelmente, se perguntando o porquê de estar arriscando a vida por uma causa que não era sua. E aí, um professor de história simplesmente diz: patético! Isso é falta de respeito, pô!

Os professores de cursinho têm essa dificuldade diante de si, causada pelo imperativo de mercado: encontrar a linha que separa o humor e a ironia do escrachamento. Isso é muito difícil, principalmente com um público jovem ávido por diversão. Principalmente, devido a tremenda concorrência existente entre os professores nos estabelecimento de cursos pré-vestibulares. Aí que entra a questão para o professor, de se vender ou não ao sistema. Preparar boas aulas, quem sabe até divertidas, sem usar em clichês ou bobagens, ou apelar para imagens escrachadas e não-historicizadas por achar estas as melhores armas no jogo competitivo do mercado. O profissional ético não pode cair na tentação de se deixar levar pelo marketing à qualquer custo.

É um tom muito moralista o meu. Eu sei. Mas é uma pré-requisito profissional mínimo. Tem que ser comentado, explicitado. Se um dia meterem o dedo na minha cara por eu ter incorrido nesse tipo de prática e eu responder, simplesmente, "é a vida!", saibam que eu já virei um cínico. E que perdi o profissionalismo.